RSS-Feed abonnieren
DOI: 10.1055/s-0035-1547376
Síndrome trófica trigeminal – Relato de caso e revisão de literatura
Trigeminal Trophic Syndrome – Case Report and Literature ReviewAddress for correspondence
Publikationsverlauf
02. Februar 2014
01. November 2014
Publikationsdatum:
29. April 2015 (online)
Resumo
A síndrome trófica trigeminal é um raro distúrbio cutâneo facial geralmente secundário a lesões trigeminais. As úlceras faciais são a manifestação mais evidente. Relatamos um caso de síndrome trófica trigeminal secundária a lesão iatrogênica de nervo trigêmeo. A literatura sobre o tema é discutida.
#
Abstract
Trigeminal trophic syndrome is a rare facial skin disorder usually secondary to trigeminal lesions. The facial ulcers are the most obvious manifestation. We report a case of trigeminal trophic syndrome secondary to iatrogenic injury of the trigeminal nerve. The literature on the topic is discussed.
#
Introdução
Descrita pela primeira vez em 1901 por Wallenberg,[1] a síndrome trófica trigeminal (STT) caracteriza-se pelo surgimento de lesões cutâneas ulceradas no território de inervação do nervo trigêmeo (NT). Em geral, surge após injúrias do quinto nervo craniano.[2] [3] É uma doença rara que foi relatada em pouco mais de cem oportunidades na literatura.[3] A fisiopatologia das lesões ainda não é completamente conhecida, e as opções terapêuticas são limitadas.[4] A literatura neurológica e neurocirúrgica ainda é pobre no tema, fazendo-se necessário mais publicações. É descrito a seguir um caso de STT secundária a lesão iatrogênica de nervo trigêmeo.
#
Relato de Caso
Paciente do sexo feminino, 50 anos, com história de dor facial à esquerda iniciada em 2005, de forte intensidade, acometendo território de V2 e V3, com zonas de gatilho, de curta duração e com vários episódios diários. Recebeu diagnóstico de neuralgia do trigêmeo, sendo adotado tratamento conservador. Em 2008, devido à refratariedade do quadro, foi submetida à descompressão microcirúrgica em outro serviço. Apresentou melhora sintomática nos 6 meses seguintes associada à anestesia de toda hemiface. Após o fim deste período, surgiu lesão ulcerada em asa do nariz à esquerda, crostosa, indolor, sangrante e não pruriginosa. Houve crescimento da lesão, inclusive com destruição de cartilagem nasal e progressão para a região malar e do arco zigomático e, poucas semanas após, região temporal, frontal e mandibular, sempre à esquerda ([Fig. 1]). Após a progressão das lesões, houve recrudescimento de quadro álgico.
Foi avaliada por médicos clínicos e dermatologistas que aventaram hipóteses de dermatite herpética, neoplasia e tuberculose cutânea. Neste ínterim, foram realizadas duas biópsias que não evidenciaram lesões neoplásicas e/ou infecciosas, mostrando apenas alterações inflamatórias crônicas e inespecíficas.
Devido ao quadro de infecção secundária das lesões, a paciente foi admitida pelo Departamento de Clínica Médica de nosso hospital em 2009. Foi solicitada avaliação neurocirúrgica por causa do quadro de dor neuropática facial, e chegou-se ao diagnóstico de STT devido à apresentação típica das lesões e histórico de intervenção neurocirúrgica. RNM evidenciou lesão completa do nervo trigêmeo esquerdo ([Fig. 2]). Na tentativa de melhora do quadro álgico, a paciente foi submetida à nucleotomia trigeminal à esquerda pela técnica padrão descrita pelo autor principal deste relato.[5] Houve melhora do quadro álgico e resolução das lesões que ocupavam dermátomos de V2 e V3.
Após 6 meses, houve nova recidiva da dor. As lesões faciais tiveram curso flutuante com períodos de piora e melhora intercalados, sem fatores desencadeantes identificados. Foi realizada terapia medicamentosa com carbamazepina, gabapentina, pregabalina e finalmente morfina, mas sem resposta eficaz. Submetida à implantação de bomba de infusão de morfina em outro serviço, apresentou melhora parcial do quadro, porém mantendo necessidade de uso rotineiro de morfina por via oral e parenteral.
Transtorno psiquiátrico e dependência de opioides foram identificados, bem como suspeita de dermatite artefacta, devido à intermitência do quadro. Com a continuidade do tratamento multidisciplinar e das internações frequentes, houve regressão de lesões dermatológicas ([Fig. 3]), porém a paciente manteve a queixa de dor facial a despeito da terapia medicamentosa.
#
Discussão
A STT é um distúrbio cutâneo caracterizado por surgimento de lesões ulceradas no território de inervação do NT, muitas vezes descrita como uma tríade composta de anestesia trigeminal, parestesias faciais e ulceração de asa do nariz.[4] [6] [7] Em geral, as lesões acometem preferencialmente o dermátomo de V2, em especial a asa do nariz, e V1.[7] [8] Raramente, há acometimento das três divisões do NT como em nosso caso.[3] [9] O NT pode ser acometido em seu trajeto central ou periférico, mas é o gânglio de Gasser a porção mais comumente envolvida.[2] Há relato de casos idiopáticos,[8] porém a etiologia mais frequentemente relatada são as lesões iatrogênicas para tratamento de neuralgia do trigêmeo (rizotomia por radiofrequência ou alcoolização); outras causas menos comuns incluem: infarto do tronco cerebral, tumores intracranianos (meningiomas, neurinomas do acústico, astrocitomas), herpes zóster, seringobulbia, insuficiência vertebrobasilar, encefalites e traumatismos cranianos.[2] [3] [4] [8] [10]
Acomete preferencialmente o sexo feminino com incidência de cerca de 2:1 em relação ao sexo masculino, o que corresponde à ocorrência aproximada de neuralgia do trigêmeo.[2] [3] [4] Há relatos de pacientes com 14 meses de vida, bem como de 93 anos de idade,[11] sendo a sexta década a mais comumente acometida.[4]
As lesões são tipicamente úlceras em crescente que se iniciam quase que invariavelmente na asa do nariz, podendo acometer qualquer área dos dermátomos trigeminais. São crostosas, indolores e não pruriginosas, podendo ser preenchidas por tecido de granulação ou material hemático.[4] [12] As lesões podem surgir após poucas semanas ou anos após a lesão trigeminal.[13] [14]
A fisiopatologia da doença não é totalmente compreendida. Há duas teorias em vigência, a mais aceita é a de que a lesão trigeminal desencadearia alterações de sensibilidade, incluindo parestesias, que levariam o paciente a autoinfligir as lesões. De fato, 75% dos pacientes acometidos referem manipulação facial.[12] Mas esta teoria falha em explicar completamente o surgimento de úlceras, pois a minoria dos pacientes que apresentam parestesias desenvolve lesões.[2] A segunda teoria, chamada de teoria trófica, afirma que substâncias tróficas ainda desconhecidas seriam produzidas no SNC e estariam implicadas na maturação da pele, já que a deaferentação trigeminal impediria a chegada destas substâncias à pele, levando ao surgimento das úlceras.[2] Esta teoria até o momento não é considerada uma explicação convincente para a etiologia da STT.[15] Outra questão ainda em aberto sobre a fisiopatologia da síndrome é a localização das lesões, já que o NT é responsável pela inervação sensitiva de toda a face, e as lesões acometem apenas alguns sítios cutâneos. Uma das explicações baseia-se na localização da lesão no gânglio trigeminal: sabe-se que o gânglio trigeminal pode ser mapeado e subdividido em áreas que corresponderiam a áreas cutâneas faciais;[16] desta forma, lesões em localizações distintas do gânglio trigeminal levariam a úlceras em regiões cutâneas correspondentes. A localização preferencial das lesões em asa do nariz é explicada pelo surgimento de anestesia e parestesias na mucosa nasal gerando sensação de congestão nasal constante, o que resultaria em manipulação frequente da asa do nariz.[4] [12] Westerhof e Bos[17] sugeriram que a lesão do gânglio trigeminal resultaria em disfunção vasomotora autonômica, já que fibras simpáticas provenientes da bainha carotídea não anastomosariam-se com fibras trigeminais, e esse tônus vasomotor reduzido levaria à queda de temperatura da pele e dificuldade de retorno venoso, condições desfavoráveis para a cicatrizarão, podendo resultar no surgimento de úlceras após traumas.
O diagnóstico de STT deve ser aventado nos casos de úlceras faciais, especialmente na asa do nariz, de anestesia trigeminal e de parestesias faciais. Histórico de lesões trigeminais, iatrogênicas ou não, torna o diagnóstico de STT mais provável. Como diagnóstico diferencial, devemos incluir causas infecciosas (dermatite herpética, tuberculose cutânea, sífilis, blastomicose, paracoccidioidomicose, leishmaniose), neoplásicas (carcinomas basocelular, espinocelular, linfoma de células T Natural Killer), doenças autoimunes (granulomatose de Wegener e vasculites). Desta forma, estudos sorológicos e análise histopatológica das lesões devem sempre ser incluídas na propedêutica destes pacientes.[2] [3] [14] Os achados típicos de biópsia não são patognomônicos e incluem hiperplasia epitelial com proliferação vascular e fibrose da derme; atipias celulares ou células gigantes não devem ser encontradas.[4]
A STT é um distúrbio de difícil terapêutica. O passo inicial é tratar as infecções secundárias das úlceras. Para esta finalidade, antibióticos tópicos e/ou sistêmicos devem ser empregados (sempre que possível, com a escolha guiada por cultura). Outra etapa importante, é a prevenção de novos traumas. Luvas de proteção, bandagem nos dedos e até máscaras plásticas têm sido usadas com sucesso.[8] [11] [18] A terapia medicamentosa visa reduzir as alterações sensitivas e evitar distúrbios comportamentais compulsivos, tentando impedir a manipulação facial. Diversas são as medicações utilizadas: carbamazepina, diazepam, amitriptilina, clorpromazina, clonazepam.[3] [8] [12] [18] Suplementação de vitamina B,[8] estimulação elétrica transcutânea facial[17] e radiação ionizante[19] também já foram descritas. Cirurgia plástica reconstrutora é utilizada para correção de defeitos, em especial da asa do nariz.[20] [21]
A STT é uma doença pouco conhecida na literatura neurocirúrgica (de todos os trabalhos utilizados para consulta neste relato, apenas um provém de publicação neurocirúrgica), seu tratamento é difícil e em geral envolve abordagem multidisciplinar. Como a principal etiologia da síndrome é resultado de intervenção direta do neurocirurgião, entendemos que seu reconhecimento deve fazer parte da gama de diagnósticos neurocirúrgicos.
#
#
Conflitos de Interesse
Os autores declaram não haver conflitos de interesse.
-
Referências
- 1 Wallenberg A. Klinische beitrage zur diagnostik akuter herderkrankungen des verlangerten marks und der Bruke. Dt Z Nervenheeilk 1901; 19: 227-231
- 2 Rashid RM, Khachemoune A. Trigeminal trophic syndrome. J Eur Acad Dermatol Venereol 2007; 21 (6) 725-731
- 3 Luksić I, Luksić I, Sestan-Crnek S, Virag M, Macan D. Trigeminal trophic syndrome of all three nerve branches: an underrecognized complication after brain surgery. J Neurosurg 2008; 108 (1) 170-173
- 4 Setyadi HG, Cohen PR, Schulze KE , et al. Trigeminal trophic syndrome. South Med J 2007; 100 (1) 43-48
- 5 Siqueira JM. A method for bulbospinal trigeminal nucleotomy in the treatment of facial deafferentation pain. Appl Neurophysiol 1985; 48 (1–6) 277-280
- 6 Finlay AY. Trigeminal trophic syndrome. Arch Dermatol 1979; 115 (9) 1118
- 7 Tollefson TT, Kriet JD, Wang TD, Cook TA. Self-induced nasal ulceration. Arch Facial Plast Surg 2004; 6 (3) 162-166
- 8 Monrad SU, Terrell JE, Aronoff DM. The trigeminal trophic syndrome: an unusual cause of nasal ulceration. J Am Acad Dermatol 2004; 50 (6) 949-952
- 9 Ferrara G, Argenziano G, Cicarelli G, Cusano F, Delfino M. Post-apopletic trigeminal trophic syndrome. J Eur Acad Dermatol Venereol 2001; 15 (2) 153-155
- 10 Arasi R, McKay M, Grist WJ. Trigeminal trophic syndrome. Laryngoscope 1988; 98 (12) 1330-1333
- 11 Sadeghi P, Papay FA, Vidimos AT. Trigeminal trophic syndrome--report of four cases and review of the literature. Dermatol Surg 2004; 30 (5) 807-812
- 12 Weintraub E, Soltani K, Hekmatpanah J, Lorincz AL. Trigeminal trophic syndrome. A case and review. J Am Acad Dermatol 1982; 6 (1) 52-57
- 13 Garza I. The trigeminal trophic syndrome: an unusual cause of face pain, dysaesthesias, anaesthesia and skin/soft tissue lesions. Cephalalgia 2008; 28 (9) 980-985
- 14 Goodnight JW, Calcaterra T. Trigeminal trophic syndrome: a report of two cases and review. Am J Otolaryngol 1994; 15 (3) 219-222
- 15 Levine JM. Historical perspective on pressure ulcers: the decubitus ominosus of Jean-Martin Charcot. J Am Geriatr Soc 2005; 53 (7) 1248-1251
- 16 Whitehead MC, Ganchrow JR, Ganchrow D, Yao B. Organization of geniculate and trigeminal ganglion cells innervating single fungiform taste papillae: a study with tetramethylrhodamine dextran amine labeling. Neuroscience 1999; 93 (3) 931-941
- 17 Westerhof W, Bos JD. Trigeminal trophic syndrome: a successful treatment with transcutaneous electrical stimulation. Br J Dermatol 1983; 108 (5) 601-604
- 18 Kurien AM, Damian DL, Moloney FJ. Trigeminal trophic syndrome treated with thermoplastic occlusion. Australas J Dermatol 2011; 52 (1) e1-e4
- 19 Loveman A. An unusual dermatosis following section of the fifth cranial nerve. Arch Dermatol Syph 1933; 28: 369-375
- 20 Bhatti AF, Soggiu D, Orlando A. Trigeminal trophic syndrome: diagnosis and management difficulties. Plast Reconstr Surg 2008; 121 (1) 1e-3e
- 21 Demir Y, Aktepe F, Özçukurlu A. Trigeminal trophic syndrome: a case with alar ulceration. Eur J Plast Surg 2002; 25: 38-40
Address for correspondence
-
Referências
- 1 Wallenberg A. Klinische beitrage zur diagnostik akuter herderkrankungen des verlangerten marks und der Bruke. Dt Z Nervenheeilk 1901; 19: 227-231
- 2 Rashid RM, Khachemoune A. Trigeminal trophic syndrome. J Eur Acad Dermatol Venereol 2007; 21 (6) 725-731
- 3 Luksić I, Luksić I, Sestan-Crnek S, Virag M, Macan D. Trigeminal trophic syndrome of all three nerve branches: an underrecognized complication after brain surgery. J Neurosurg 2008; 108 (1) 170-173
- 4 Setyadi HG, Cohen PR, Schulze KE , et al. Trigeminal trophic syndrome. South Med J 2007; 100 (1) 43-48
- 5 Siqueira JM. A method for bulbospinal trigeminal nucleotomy in the treatment of facial deafferentation pain. Appl Neurophysiol 1985; 48 (1–6) 277-280
- 6 Finlay AY. Trigeminal trophic syndrome. Arch Dermatol 1979; 115 (9) 1118
- 7 Tollefson TT, Kriet JD, Wang TD, Cook TA. Self-induced nasal ulceration. Arch Facial Plast Surg 2004; 6 (3) 162-166
- 8 Monrad SU, Terrell JE, Aronoff DM. The trigeminal trophic syndrome: an unusual cause of nasal ulceration. J Am Acad Dermatol 2004; 50 (6) 949-952
- 9 Ferrara G, Argenziano G, Cicarelli G, Cusano F, Delfino M. Post-apopletic trigeminal trophic syndrome. J Eur Acad Dermatol Venereol 2001; 15 (2) 153-155
- 10 Arasi R, McKay M, Grist WJ. Trigeminal trophic syndrome. Laryngoscope 1988; 98 (12) 1330-1333
- 11 Sadeghi P, Papay FA, Vidimos AT. Trigeminal trophic syndrome--report of four cases and review of the literature. Dermatol Surg 2004; 30 (5) 807-812
- 12 Weintraub E, Soltani K, Hekmatpanah J, Lorincz AL. Trigeminal trophic syndrome. A case and review. J Am Acad Dermatol 1982; 6 (1) 52-57
- 13 Garza I. The trigeminal trophic syndrome: an unusual cause of face pain, dysaesthesias, anaesthesia and skin/soft tissue lesions. Cephalalgia 2008; 28 (9) 980-985
- 14 Goodnight JW, Calcaterra T. Trigeminal trophic syndrome: a report of two cases and review. Am J Otolaryngol 1994; 15 (3) 219-222
- 15 Levine JM. Historical perspective on pressure ulcers: the decubitus ominosus of Jean-Martin Charcot. J Am Geriatr Soc 2005; 53 (7) 1248-1251
- 16 Whitehead MC, Ganchrow JR, Ganchrow D, Yao B. Organization of geniculate and trigeminal ganglion cells innervating single fungiform taste papillae: a study with tetramethylrhodamine dextran amine labeling. Neuroscience 1999; 93 (3) 931-941
- 17 Westerhof W, Bos JD. Trigeminal trophic syndrome: a successful treatment with transcutaneous electrical stimulation. Br J Dermatol 1983; 108 (5) 601-604
- 18 Kurien AM, Damian DL, Moloney FJ. Trigeminal trophic syndrome treated with thermoplastic occlusion. Australas J Dermatol 2011; 52 (1) e1-e4
- 19 Loveman A. An unusual dermatosis following section of the fifth cranial nerve. Arch Dermatol Syph 1933; 28: 369-375
- 20 Bhatti AF, Soggiu D, Orlando A. Trigeminal trophic syndrome: diagnosis and management difficulties. Plast Reconstr Surg 2008; 121 (1) 1e-3e
- 21 Demir Y, Aktepe F, Özçukurlu A. Trigeminal trophic syndrome: a case with alar ulceration. Eur J Plast Surg 2002; 25: 38-40