CC BY 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo)
DOI: 10.1055/s-0043-1771487
Relato de Caso

Monoartrite persistente do joelho como apresentação de Doença de Lyme: um desafio diagnóstico. Relato de caso

Article in several languages: português | English
1   Serviço de Ortopedia do Hospital de Cascais, Dr. José de Almeida, Cascais, Portugal
,
2   Hospital Dr. Nélio Mendonça, Funchal, Madeira, Portugal
,
3   Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, Lisboa, Portugal
,
3   Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, Lisboa, Portugal
,
4   Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, Amadora, Portugal
,
5   Hospital Ortopédico de Sant'Ana, Parede, Portugal
› Author Affiliations
Suporte Financeiro Este estudo não recebeu nenhum suporte financeiro de fontes públicas, comerciais, ou sem fins lucrativos.
 

Resumo

Na investigação da monoartrite do joelho deverão ser considerados vários diagnósticos diferenciais. Relata-se o caso de uma doente com episódios recorrentes de derrame do joelho, em que a clínica inespecífica implicou várias hipóteses diagnósticas, imprecisões terapêuticas e um atraso na implementação de terapêutica adequada.

Durante mais de 2 anos, a doente foi avaliada em diferentes consultas de Ortopedia e Reumatologia. Realizou múltiplas terapêuticas incluindo uma artroscopia do joelho com meniscectomia parcial, com melhoria transitória das queixas, contudo sem diagnóstico definitivo. Após coleta de amostras de líquido sinovial com exames microbiológicos sucessivamente negativos, verificou-se uma sobreposição de artrite séptica por microrganismos atípicos isolados no tecido sinovial (Pantoea spp. e Staphylococcus saprophyticus) e artrite de Lyme. Foi realizada lavagem e desbridamento cirúrgico, seguido de antibioterapia dirigida com resposta transitória, por infeção persistente (estadio 3).

O caso apresentado demonstra a necessidade de uma abordagem multidisciplinar da monoartrite do joelho.


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Introdução

A monoartrite do joelho tem diversas causas, implicando um diagnóstico diferencial complexo[1] [2] ([Table 1]). A monoartrite de Lyme, apesar de amplamente reconhecida na literatura, continua a representar um desafio diagnóstico que requer alta suspeição clínica, por ser frequente a ausência de contexto epidemiológico (picada de carrapato) ou de exames culturais positivos.[1] [2] [3] [4] Os autores apresentam um caso de monoartrite secundária a doença de Lyme com diagnóstico tardio.

Table 1

Infeciosa

Bacteriana (gonocócica e não-gonocócica)

Viral

Espiroquetas (Lyme, Sifilis)

Fungíca

Microcristalina

Gota

Pseudogota

Hidroxiapatite/Fosfato de cálcio básico

Oxalato de cálcio

Traumática

Fractura oculta / de stress

Leão meniscal e/ou ligamentar

Corpo estranho

Inflamatória / Auto-Imune

Artrite reactiva

Artrite psoriática

Espondilite anquilosante

Artrite Reumatóide

Lúpus

Sarcoidose

Behçet

Metabólica

Hiperparatiroidismo

Hipotiroidismo

Hemocromatose

Acromegália

Amiloidose

Tumoral

Osteocondroma

Osteoide osteoma

Sinovite vilonodular pigmentada

Tumor maligno (primário ou metastático)

Outros

Artrose

Coagulopatia

Vasculite

Osteonecrose


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Relato do Caso

Paciente do sexo feminino, de 39 anos, sem antecedentes relevantes, apresentou-se com quadro súbito de derrame articular e dor de ritmo misto no joelho direito, em maio de 2019. Negava queixas em outras articulações, febre, lesões cutâneas ou outra sintomatologia, bem como mordida por carrapato ou outro agente ([Fig. 1]).

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Fig. 1 Timeline da evolução do caso relatado.Descrição: Evolução clínica desde o início do quadro. Destaca-se recidiva das queixas em Maio de 2022, mantendo derrame com impotência funcional e dor residuais em Agosto de 2022.

Dadas as queixas predominantemente inflamatórias, foi avaliada por dois reumatologistas, tendo realizado prova terapêutica com metotrexato e prednisolona durante 4 meses, sem melhoria.

Após 17 meses realizou Ressonância Magnética (RMN) que confirmou derrame articular e a presença de cisto de Baker, foco de edema medular do planalto externo e rotura do menisco interno ([Fig. 2]). Nesta ocasião sem queixas meniscais.

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Fig. 2 Imagens de Ressonância Magnética .Descrição: RMN de 3 de Outubro de 2020. É possível observar derrame intra-articular, lesão do planalto tibial externo, irregularidade do corno posterior do menisco interno e cisto de Baker.A: Corte Sagital, T1B: Corte Coronal T1C: Corte Coronal T2D: Corte Axial T2

Após 18 meses do início do quadro, por persistência de queixas e discreto agravamento das queixas mecânicas foi submetida a artroscopia do joelho com coleta de líquido sinovial (exame bacteriológico negativo).

Concomitantemente, foram realizadas microfracturas da lesão do planalto externo, meniscectomia parcial interna, excisão de sistema valvular do cisto de Baker e infiltração intra-articular com betametasona. No período pós-operatório apresentou melhoria significativa, com diminuição do edema e recuperação do arco de mobilidade.

Após seis meses apresentou duas recidivas da monoartrite, interpretadas como inflamação residual e controladas com novas infiltrações. Repetiu RMN, observando-se apenas a já conhecida lesão condral. Não sendo justificável o quadro clínico por lesão estrutural, foi solicitada uma terceira avaliação pela Reumatologia.

Nessa observação, 2 anos e meio após início do quadro, realizou controle laboratorial para esclarecimento do quadro de monoartrite crônica do joelho de causa indeterminada. Destacavam-se: aumento da velocidade de sedimentação (36mm/h), e proteína C reactiva (PCR), estudo de doenças auto-imunes e hemoculturas negativos. Foi realizada nova artrocentese e biópsia da membrana sinovial ecoguiada, com remoção de 6 fragmentos de membrana para exame histopatológico e 5 para bacteriológico (de anaeróbios, aeróbios, micobacterias, fungos e parasitas), pesquisa de Neisseria Gonorrhoeae, Chlamydia trachomatis e Borrelia Burgdorferi. O líquido sinovial apresentava-se amarelo citrino turvo com bioquímica sugestiva de artropatia inflamatória crônica (22240cél/uL, 4.9g/dL de proteínas), sem cristais e com culturas negativas. O exame histológico da membrana sinovial foi sugestivo de sinovite crônica com moderada atividade inflamatória e infiltrado predominantemente linfoide, mas com cultura em aerobiose positiva para Pantoea spp. e Staphylococcus saprophyticus, sensíveis à oxacilina. Assumiu-se o diagnóstico de artrite séptica crônica com indicação cirúrgica. A paciente foi submetida a lavagem e desbridamento, sinovectomia e coleta de tecido e líquido sinoviais para exame bacteriológico (8 amostras negativas) por via artroscópica. Cumpriu 2 semanas de flucloxacilina endovenosa com resolução progressiva do derrame e dor, mantendo PCR negativa durante a internação hospitalar. Teve alta com indicação para manter antibioterapia oral durante mais 8 semanas pós cirurgia (flucloxacilina 2g de 6 em 6h).

Seis semanas após a lavagem artroscópica, obteve-se o resultado da sorologia de B. burgdorferi realizada em laboratório de referência, que foi positiva para IgG e IgM por método ELISA, com teste confirmatório IgM por Immunoblot positivo. Após discussão multidisciplinar (Reumatologia, Infeciologia e Ortopedia), a antibioterapia foi alterada para doxicicilina durante 28 dias, admitindo-se Doença de Lyme. Foi realizada nova biópsia da sinovial para pesquisa de DNA de B. burgdorferi, que foi negativa (sob antibioterapia).

A doente evoluiu favoravelmente, com resolução progressiva do quadro, retomou a atividade laboral e a deambulação sem limitações. Aos 6 meses pós lavagem, desbridamento e início de antibioterapia destaca-se novo episódio de derrame, sem dor ou impotência funcional. Repetiu artrocentese mantendo pesquisa de DNA de B. burgdorferi negativa, com serologia inconclusiva para IgG e IgM por método ELISA, com teste confirmatório por Immunoblot IgM positivo e IgG negativo ([Table 2]).

Table 2

Data

Método de Colheita

Amostra

Resultado

22/11/2020

Artroscopia

Líquido sinovial

Negativo

03/11/2021

Artrocentese ecoguiada

Líquido sinovial

Negativo (aeróbios, anaeróbios, micobactérias, parasitas, fungos e pesquisa de N. gonorrhoeae e C. trachomatis)

Biópsia sinovial

Pantoea spp. e S. Saprophyticus

22/11/2021

Artroscopia

Líquido Sinovial

Biópsia Sinovial

Negativo (total de 8 colheitas: anaeróbios, aeróbios e micobactérias)

Novembro-Dezembro 2021

Serologia

Serologia

IgM e IgG positivas para B. burgdorferi (ELISA) e IgM positiva (Immunblot)

13/01/2022

Artrocentese ecoguiada

Líquido sinovial

Pesquisa de DNA de B. burgdorferi negativa (sob antibioterapia)

26/05/2022

Artrocentese ecoguiada

Líquido sinovial

Pesquisa de DNA de B. burgdorferi negativa

Serologia

Serologia

IgM e IgG inconclusivos para B. burgdorferi (ELISA). Teste confirmatório com IgM positiva e IgG negativa (Immunblot)


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Discussão

O caso relatado ilustra a complexidade do diagnóstico diferencial de monoartrite do joelho por Doença de Lyme.[1] [2] As múltiplas colheitas negativas e a ausência de métodos sensíveis de identificação de B. burgdoferi levaram à atribuição das queixas da doente à patologia meniscal, cisto de Baker, lesão da cartilagem e inflamação residual pós-operatória. Verificou-se uma sobreposição de artrite séptica e doença de Lyme em que as queixas inespecíficas implicaram um atraso significativo no diagnóstico. É valorizável a identificação de S. coagulase negativo em biópsia profunda, sendo que é possível contaminação por Pantoea spp. Apenas uma abordagem multidisciplinar permitiu o diagnóstico e tratamento adequados mais de dois anos após o início das queixas.

A monoartrite na doença de Lyme localiza-se mais frequentemente no joelho e afeta até 60% dos doentes não tratados, sendo o derrame articular o principal achado clínico.[5] [6] [7] Frequentemente não é documentada a mordedura de carrapato.[5] [6] A ausência de rubor e calor, a avaliação analítica e os exames bioquímico e histológico no caso descrito são também sugestivos de artrite de Lyme.[1] [5] [7] [8] Destaca-se que, dado o tempo de evolução, seria de esperar positividade para IgG de B. burgdorferi também na análise confirmatória (Immunoblot).[6] A pesquisa de DNA de B. burgdorferi no líquido sinovial após início de antibioterapia é frequentemente negativa.[5] [6] Também a cultura deste microrganismo é difícil e a sua sensibilidade limitam a sua utilização para diagnóstico.[1] [5] Como neste caso, o diagnóstico é geralmente feito com base na seropositividade associada a artrite.[5] A doxiciclina está indicada na artrite de Lyme, com excelente resposta clínica na maioria dos doentes.[5] [6] [8]

Estamos perante uma infeção persistente (estadio 3), sendo o joelho mais comumente afetado, com episódios frequentes de artrite alternados com períodos de remissão.[7] [8] [9] Este tipo de evolução é relativamente frequente e sugere que a inflamação articular pode manter-se apesar da irradicação da Borrelia burgdoferi, condicionando uma lesão da sinovial com achados semelhantes aos encontrados noutras formas de artrite inflamatória crônica.[7] [9]

Assim, a complexidade da marcha diagnóstica do caso apresentado reitera a importância de realizar uma abordagem multidisciplinar dos doentes com monoartrite do joelho.


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Conflito de Interesses

Dra. Bárbara Flor de Lima declarou bolsa ou contrato com o Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca como especialista em doenças infecciosas. A autora também declarou pagamento da Escola Médica de Lisboa por ter atuado como assistente de microbiologia convidada.

Os outros autores declaram não haver conflito de interesses.

Trabalho desenvolvido no Hospital Ortopédico de Sant'Ana, Parede, Portugal.


  • Referências

  • 1 Maury EE, Flores RH. Acute monarthritis: diagnosis and management. Prim Care 2006; 33 (03) 779-793
  • 2 Sack K. Monarthritis: differential diagnosis. Am J Med 1997; 102 (1A): 30S-34S
  • 3 Ma L, Cranney A, Holroyd-Leduc JM. Acute monoarthritis: what is the cause of my patient's painful swollen joint?. CMAJ 2009; 180 (01) 59-65
  • 4 Siva C, Velazquez C, Mody A, Brasington R. Diagnosing acute monoarthritis in adults: a practical approach for the family physician. Am Fam Physician 2003; 68 (01) 83-90
  • 5 Arvikar SL, Steere AC. Diagnosis and treatment of Lyme arthritis. Infect Dis Clin North Am 2015; 29 (02) 269-280
  • 6 Matzkin E, Suslavich K, Curry EJ. Lyme Disease Presenting as a Spontaneous Knee Effusion. J Am Acad Orthop Surg 2015; 23 (11) 674-682
  • 7 Lochhead RB, Strle K, Arvikar SL, Weis JJ, Steere AC. Lyme arthritis: linking infection, inflammation and autoimmunity. Nat Rev Rheumatol 2021; 17 (08) 449-461
  • 8 Miller JB, Aucott JN. Stages of Lyme Arthritis. J Clin Rheumatol 2021; 27 (08) e540-e546
  • 9 Bennett JE, Dolin R, Blaser MJ. Mandell. Douglas, and Bennett's principles and practice of infectious diseases. Philadelphia: Elsevier; 2020

Endereço para correspondência

Rita Alçada
Serviço de Ortopedia do Hospital de Cascais, Av. Brigadeiro Victor Novais Gonçalves
2755-009 Alcabideche
Portugal   

Publication History

Received: 10 August 2022

Accepted: 27 February 2023

Article published online:
22 April 2024

© 2024. The Author(s). This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution 4.0 International License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/)

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Rua do Matoso 170, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20270-135, Brazil

  • Referências

  • 1 Maury EE, Flores RH. Acute monarthritis: diagnosis and management. Prim Care 2006; 33 (03) 779-793
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  • 3 Ma L, Cranney A, Holroyd-Leduc JM. Acute monoarthritis: what is the cause of my patient's painful swollen joint?. CMAJ 2009; 180 (01) 59-65
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  • 5 Arvikar SL, Steere AC. Diagnosis and treatment of Lyme arthritis. Infect Dis Clin North Am 2015; 29 (02) 269-280
  • 6 Matzkin E, Suslavich K, Curry EJ. Lyme Disease Presenting as a Spontaneous Knee Effusion. J Am Acad Orthop Surg 2015; 23 (11) 674-682
  • 7 Lochhead RB, Strle K, Arvikar SL, Weis JJ, Steere AC. Lyme arthritis: linking infection, inflammation and autoimmunity. Nat Rev Rheumatol 2021; 17 (08) 449-461
  • 8 Miller JB, Aucott JN. Stages of Lyme Arthritis. J Clin Rheumatol 2021; 27 (08) e540-e546
  • 9 Bennett JE, Dolin R, Blaser MJ. Mandell. Douglas, and Bennett's principles and practice of infectious diseases. Philadelphia: Elsevier; 2020

Zoom Image
Fig. 1 Timeline da evolução do caso relatado.Descrição: Evolução clínica desde o início do quadro. Destaca-se recidiva das queixas em Maio de 2022, mantendo derrame com impotência funcional e dor residuais em Agosto de 2022.
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Fig. 2 Imagens de Ressonância Magnética .Descrição: RMN de 3 de Outubro de 2020. É possível observar derrame intra-articular, lesão do planalto tibial externo, irregularidade do corno posterior do menisco interno e cisto de Baker.A: Corte Sagital, T1B: Corte Coronal T1C: Corte Coronal T2D: Corte Axial T2
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Fig. 1 Timeline of the clinical course of the reported case.Description: Clinical evolution since the beginning of the condition. Complaints recurred in May 2022, with persistent effusion, functional impotence, and residual pain in August 2022. MRI, Magnetic resonance imaging.
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Fig. 2 Magnetic resonance images.Description: A MRI from October 3, 2020, revealed intra-articular effusion, external tibial plateau injury, irregularity of the posterior horn of the internal meniscus, and a Baker cyst.A: T1-weighted sagittal sectionB: T1-weighted coronal sectionC: T2-weighted coronal sectionD: T2-weighted axial section